A Bíblia e o UNIVERSO AQUÁTICO

E o Espírito de Deus Pairava sobre a Face do CAOS...

De todos os maus entendidos e incompreensões sobre a Bíblia, especialmente por parte dos crentes, talvez o mais impressionante seja o que diz respeito à sua concepção de universo. Praticamente inexiste, em especial no protestantismo, a mínima noção de como este livro sagrado realmente descreve o cosmos, ainda que isso seja incrivelmente explícito em diversas passagens.

Dois motivos contribuem para isso. Um, a simples incapacidade exegética de ler o texto devidamente, em geral comprometida com uma visão pré-moldada que bloqueia a percepção do óbvio. O Outro, mais relevante, a incapacidade hermenêutica de entender que isso não deve ser visto com um viés anti-bíblico, pois apesar dessa descrição ser absurdamente diferente da realidade que hoje aceitamos, nem por isso deve ser negligenciada ou rejeitada.

Por isso, completamente conformado contra as inevitáveis reações escandalizadas a esse texto, venho aqui demonstrar, objetivamente, que, se lida de forma literal: A Narrativa Bíblica Descreve uma Terra Plana, Sob uma Redoma Protetora, Imersa num UNIVERSO AQUÁTICO de tamanho indefinido, cujas "Águas" são uma forma de simbolizar o CAOS Primordial.

Que a concepção literal bíblica sobre a Terra é de um mundo plano circular está inegavelmente demonstrado no texto A Falsa Inerrância Científica Bíblica - Parte 1. Texto que já está há quase 10 anos no ar e já foi amplamente lido e comentado, sem sequer uma única tentativa de refutação, pelo simples fato de que uma leitura honesta literal o deixa evidente.

Que o universo bíblico envolve um caos aquático onde o mundo está submerso, foi vagamente comentado em A Falsa Inerrância Científica Bíblica - Parte 2, e mais detalhadamente nas respostas às mensagens 221 e 275, que em parte são reaproveitadas aqui.

Vejamos então uma demonstração clara desta concepção.

O UNIVERSO AQUÁTICO

"No princípio criou Deus os céus e a terra. A terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo, mas o Espírito de Deus pairava sobre a face das águas." [Gênesis 1:1-2]

Muitas pessoas pensam que a "terra" em questão inclui as "águas", uma visão que, no entanto, já está influenciada por nossa noção contemporânea. No entanto, não existe na bíblia a concepção de "terra" como se fosse um planeta, ou um mundo como o entendemos, que inclui os oceanos. A "terra", no caso, é necessariamente a terra seca, como está claramente dito no versículo 10.

"E disse Deus: haja um firmamento no meio das águas, e haja separação entre águas e águas. Fez, pois, Deus o firmamento, e separou as águas que estavam debaixo do firmamento das que estavam por cima do firmamento. E assim foi. Chamou Deus ao firmamento céu. E foi a tarde e a manhã, o dia segundo. E disse Deus: Ajuntem-se num só lugar as águas que estão debaixo do céu, e apareça o elemento seco. E assim foi. Chamou Deus ao elemento seco terra, e ao ajuntamento das águas mares. E viu Deus que isso era bom." [Gênesis 1:6-10]

O que significa uma separação entre "águas" e "águas"? Para entender isso é preciso notar que existe um bom motivo para esse "águas" no plural, pois isso a distingue de "mar" e de "abismo", visto que cada um desses termos traduz uma palavra hebraica diferente.

Palavra Hebraica Tradução Ocorrências Significado
mah'-yim
(mayin)
"águas"
água
Em praticamente todo o AT. Água, no sentido comum, ou as "Águas" num sentido mais misterioso.
yawm
(yam)
mar Em praticamente todo o AT. Grandes massas de água, mares ou lagos. Costa marítima.
teh-home'
(thowm)
abismo Somente em Gênese, Livro de , Salmos, e nos livros proféticos. Quase sempre de forma metafórica. A totalidade do mar, as águas subterrâneas, profundezas.

Portanto, as "águas" são a matriz de onde deus fez o Mar, e de onde tirou a Terra. As águas de cima ficaram contidas pelo "firmamento" (shachaq / shakh'-ak), que como essa tradução mesma sugere, "é sólido como um espelho fundido" [Jó 37:18]. Esse firmamento, pode ser traduzido também como "céu", porém numa concepção diferente dos "céus" (shamayim / shaw-mah'-yim) onde vivem os anjos, basicamente como na distinção inglesa entre sky e heaven.

É esse firmamento que protege a terra das águas superiores, que estão além dos céus, enquanto as águas inferiores, o abismo, ficam abaixo da terra. Sem essa proteção sólida, as águas superiores cairiam e devastariam a terra, como de fato é descrito no dilúvio. "No ano seiscentos da vida de Noé, no mês segundo, aos dezessete dias do mês, romperam-se todas as fontes do grande abismo, e as janelas do céu se abriram," [Gênesis 7:11]. Ou seja, não se tratou de uma mera chuva muito forte, mais intensa que a média, mas sim de uma quantidade de água muitíssimo maior que a disponível nos céus. Além disso, as águas do abismo também transbordaram, isto é, a separação entre águas descrita na Gênese foi suspensa por algum tempo, inundando toda a terra. Somente com o fechamento das janelas do céu e das fontes do abismo, em Gênesis [8:2], que a chuva deixou de cair sobre a terra e ás águas começaram a se retrair.

Isso, no entanto, não esgotou as águas superiores, caso contrário não teria sido necessário fechar as portas do céu para deter o dilúvio. Portanto, a concepção bíblica do Universo permanece com a idéia de que a terra está dentro de uma imensa bolha de ar, coberta pelo firmamento, abaixo de uma quantidade aparentemente infindável de "águas".

E o mais importante, essas "águas", quase certamente, são também "eternas", como o próprio Deus, que é o que veremos a seguir.

Mas antes, lembremos que o conceito de 'terra' ('erets / eh'-rets), não inclui uma noção de um mundo que abrange terras e águas, e muito menos os céus, mas sim somente o 'elemento seco' (yabbashah / yab-baw-shaw') .

AS "ÁGUAS" NÃO FORAM CRIADAS

"...pela palavra de Deus já desde a antiguidade existiram os céus, e a terra, QUE FOI TIRADA DA ÁGUA E NO MEIO DA ÁGUA SUBSISTE. Pelas quais coisas pereceu o mundo de então, coberto com as águas do dilúvio." 2 Pedro [3:5-6]

Diferente das anteriores essa última passagem está contida no Novo Testamento, e vem a confirmar o que já está dito no primeiro versículo da Bíblia. Que no princípio Deus criou céus e terra, MAS NÃO AS "ÁGUAS"! Isso fica claro quando se lê todo o primeiro capítulo, onde é descrito esse processo de criação.

E não é a única. No final da Bíblia, temos:

"...dizendo com grande voz: Temei a Deus, e dai-lhe glória; porque é chegada a hora do seu juízo; e adorai AQUELE QUE FEZ O CÉU, E A TERRA, E O MAR, E AS FONTES DAS ÁGUAS." Apocalipse 14:7

Ou seja, Deus fez AS FONTES, por onde fluem as águas, e não as águas em si. Em ambos os versículos, o termo grego original é "hudor".

Voltando ao AT, outra evidência, que assim como Gênesis 7:11, também se refere a "fontes", pode ser vista nos Provérbios.

O Senhor me criou como a primeira das suas obras, o princípio dos seus feitos mais antigos. Desde a eternidade fui constituída, desde o princípio, antes de existir a terra. Antes de haver abismos, fui gerada, e antes ainda de haver fontes CHEIAS D'ÁGUA. Antes que os montes fossem firmados, antes dos outeiros eu nasci, quando ele ainda não tinha feito a terra com seus campos, nem sequer o princípio do pó do mundo. Quando ele preparava os céus, aí estava eu; quando traçava um círculo sobre a face do abismo, quando estabelecia o firmamento em cima, quando se firmavam as fontes do abismo, quando ele fixava ao mar o seu termo, para que AS ÁGUAS não traspassassem o seu mando, quando traçava os fundamentos da terra, Provérbios [8:22-29]

Note que, mais uma vez, não se fala em criação das águas, pelo contrário. Diz que nesse princípio, as águas eram uma coisa que tinha que ser "administrada", contida pelo criador, para que não transpassassem os limites impostos.

Para isso, existem as "fontes" por onde as águas são vertidas cuidadosamente, pois se forem rompidas, como dito em Gênesis 7:11, o resultado seria um dilúvio.

E notemos que se as águas não foram criadas, também não há evidência que deixarão de existir, como ocorrerá com o Céu e a Terra.

"E vi um novo céu e uma nova terra. Porque já se foram o primeiro céu e a primeira terra, e o mar já não existe." Apocalipse 21:1

A palavra grega para mar é "thalassa", diferente do "hudor" que se traduz por "águas". Assim, o Livro das Revelações atesta que findarão Céus, Terra e Mar, mas não atesta o fim das "águas", das quais o mar é apenas um ajuntamento.

Por fim, ocorre também uma noção de potencial "produtivo" nas águas, que parecem capazes de gerar vida.

E disse Deus: Produzam as águas cardumes de seres viventes; e voem as aves acima da terra no firmamento do céu. Criou, pois, Deus os monstros marinhos, e todos os seres viventes que se arrastavam, os quais as águas produziram abundantemente segundo as suas espécies; e toda ave que voa, segundo a sua espécie. E viu Deus que isso era bom. Gênese [1:20-21]

Assim, as águas produzem seres viventes, assim como a terra, que, sabemos, necessita de água para produzir. Não é dito que os céus, ou o ar, produziram aves.

Em suma, é atestado o poder produtivo das águas, do Caos, que deve ser manipulado pelo arquiteto do universo.

C A O S

É uma figura marcante das gêneses mitológicas, que com frequência descrevem a criação do mundo por meio de alguma substância original, em geral descrita na forma de água, ou de Caos. As 'águas' da Gênese, bem como em outras mitologias, são uma representação do Caos, isto é, a matéria prima fundamental do universo, com o qual o "arquiteto" molda o mundo.

A palavra 'caos' tem origem grega, sendo evidentemente a divindade primordial, da qual todas as outras divindades saíram, mas sua idéia é refletida em religiões radicalmente distantes e distintas como o Xintoísmo japonês, ou a mitologia Maia.

Aparentemente, nenhum sistema de pensamento mítico jamais defendeu realmente que o universo foi criado, ou surgiu, a partir do Nada, nem mesmo o cristianismo. A dita creatio ex-nihil que muitos teólogos defendem, pode não passar de um inacreditável mal entendido.

O Caos também é usado para destruir e renovar, por isso o Dilúvio se dá por meio da água que refaz o mundo. Por isso batismo é realizado com um mergulho na água, simbolizando um retorno ao caos e um renascimento. A mesma água que dá vida, também pode trazer a morte. Por isso o universo bíblico é uma espécie de "bolha" de Ordem imersa num universo de Caos aquático, as águas que estão acima e abaixo, como dito na Gênese.

Também como qualquer outra mitologia ou visão antiga de mundo, não existe o conceito de "gravidade", e a queda dos corpos num sentido único é fato inquestionado e suposto para todo o universo.

O problema, é que por pura deficiência semântica, Caos costuma ser confundido com Nada, confusão esta que ocorre mesmo na cosmogonia física contemporânea, ao afirmar que o big-bang teria se originado numa flutuação do "Vácuo Quântico". Porém esse vácuo jamais poderia ser Nada mas sim Algo, e esse algo informe seria, por definição, o Caos.

Paralelamente, os teólogos cristãos não tem um motivo metafísico claro para defender a criação do nada, eles a defendem, pura e simplesmente, para afirmar a absoluta precedência de Deus sobre o universo, pois admitir o Caos seria admitir algo tão perpétuo e pré-existente quanto Deus, o que por algum motivo psicoemotivo obscuro, não pode ser admitido, ainda que o contrário seja totalmente absurdo e incompreensível.

O motivo mais provável, é que admitir a perenidade do Caos levaria à tentadora, talvez inevitável, conclusão de que Deus também surgiu do Caos! Não sendo, portanto, perpétuo, incriado ou eterno.

CAOS X ORDEM

Outro problema com o conceito de Caos é que ele costuma ser conhecido mais pela sua característica de desordem. No entanto, essa é uma derivação, secundária, que só posteriormente viria a ganhar relevância. Originalmente, o sentido é de Potência Primordial, que tem como características misturar todas as possibilidades do universo numa matriz indistinta.

Assim, o Demiurgo ordenador seria aquele que impõe Ordem, fazendo a separação dos elementos do Caos, ou separando Águas e Águas. Poderia ficar pendente a origem de tal Demiurgo, mas aparentemente, em todas a mitologias, uma regressão inevitavelmente tende a levar à idéia de que este também nasceu do Caos.

A única coisa perene, portanto, seria o próprio Caos.

Curiosamente, a Bíblia também não sustenta a idéia de um deus eterno no sentido de eternidade definido pelos filósofos e teólogos tradicionais, que seria algo que está além do tempo, tendo sempre existido. Ao longo do AT dois termos costumam ser traduzidos por eternidade, keh'-dem e o-lawm', mas o primeiro também tem sentido de 'antigo', ou mesmo de 'leste', sugerindo algo que vem de longe, enquanto o segundo também é aplicado a substantivos que evidentemente não existiram sempre, como montanhas ou o pacto com Israel.

O mesmo acontece no NT.

Como vemos, a teologia tradicional é uma grande extrapolação da Bíblia, adicionando elementos da cultura helênica desenvolvidos em tradições completamente diferentes. O próprio NT já é uma extrapolação do AT, a ponto de sequer ser reconhecido pelos autores, e maiores autoridades no assunto, os judeus.

O QUE MUDA COM ESSA INTERPRETAÇÃO?

Essencialmente nada. O máximo, e melhor, que pode fazer, é ajudar a demonstrar que uma interpretação literal da gênese bíblica é insustentável para qualquer propósito prático. Para efeito doutrinário isso é irrelevante, e muito menos tem qualquer serventia para julgar a validade ou não do cristianismo, exceto em equivocadas pretensões fundamentalistas de inerrância científica, uma novidade do século XIX / XX que só trouxe prejuízo.

Mas para mim, há uma mudança significativa. Há anos publiquei a seguinte ilustração da concepção bíblica do universo, e agora vejo que ela está errada, ou pelo menos incompleta, pois teria que fixar as estrelas na abóbada do firmamento, possivelmente girando-o ao redor da terra, e submergir todo o modelo no Caos Aquático.

De qualquer modo, há muitos modelos interessantes disponíveis na internet, embora penso que nenhum deles conseguiu descrever a visão bíblica com exatidão.

Talvez porque tal descrição seja impossível, visto que o modo como o firmamento interage com as águas, considerando que tem que girar para fazer o movimento das estrelas, seria mais coerente como uma esfera, mas o estranho versículo "O sol nasce, e o sol se põe, e corre de volta ao seu lugar donde nasce."Ec 1:5 torna até isso aparentemente incompatível.

Mas essa interpretação serve também para os bibliófilos se darem conta do quanto eles professam crenças que não tem base no livro em que pensam se fundamentar exclusivamente. Do quanto estão tão submersos em teologias que transcendem a base bíblica, com influências de ordem pagã e helênica.

Não há Creatio Ex Nihilo na Bíblia. O Universo foi criado a partir das Águas.

A partir do CAOS.

Marcus Valerio XR
Fevereiro a Dezembro de 2011

A Falsa Inerrância Científica Bíblica
A Falsa Inerrância Científica Bíblica II

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