NÃO EXISTE CRIAÇÃO!
Ou, se existe, ESTÁ COMPLETAMENTE FORA DE NOSSA EXPERIÊNCIA! Isso é inegável se tivermos em mente
o significado literal de "Criação", que é o de Creatio Ex-Nihilo, isto é, CRIAÇÃO DO NADA.
Algo que surge de outra coisa sofre uma TRANSFORMAÇÃO, para ser literalmente "Criado" tem que vir do nada. Assim, se a
idéia de evolução vem da pura simples observação da natureza, com suas constantes transformações,
De onde vem a idéia de Criação?
Da Bíblia, certo? ERRADO!
NÃO EXISTE CRIAÇÃO NA BÍBLIA!
Em todo o relato da Gênese, não há, EM LUGAR ALGUM, qualquer menção a idéia de criação a partir do nada! Tudo é, também,
transformado, embora num nível seguramente não observado na natureza. A mulher foi feita do homem, o homem foi feito do
barro, assim como todos os animais terrestres e as plantas. Os animais aquáticos foram feitos da água, e os aéreos do ar.
Tudo isso está claro no primeiro capítulo do primeiro livro da Bíblia.
Mas de onde vieram a terra, o ar e mar?
Das Águas! Ou melhor dizendo, de uma matriz primordial de matéria, um CAOS perene,
que é representado pela palavra hebraica mayim que é sempre traduzida como "águas", no plural, e que também pode
ter significado de "sêmen", ou seja, uma fonte primordial de matéria.
Como se vê claramente na Gênese, os Céus e a Terra foram criados dessas "águas", ou, podemos dizer, separados dela,
visto que um Caos é exatamente uma fonte original de elementos misturados. Note que no versículo 7 é dito que Deus fez uma
separação das águas de cima e das águas de baixo, que é o firmamento (raqiya`), uma "bolha" entre as águas,
à qual chamou shamayim (Céus).
E nos versículos 9 e 10 separou as águas abaixo dos Céus extraindo o elemento seco (yabbashah), ao qual chamou
"terra", enquanto o restante das águas foram consideradas thowm (abismo), que é a soma do mar e das águas
subterrâneas, as águas inferiores, e yam que é somente o "mar". E em nenhum momento é dito que as Águas originais
foram criadas.
O termo hebraico normalmente traduzido como "criar" é bara', que também pode ser traduzido como "produzir",
"fabricar", "selecionar" etc. Ou seja, é "criar" num sentido mais genérico, que nada mais é do que transformar, assim
como nós, ao dizer que "criamos" algo, apenas realizamos uma série de transformações.
Portanto, não há em todo o Velho Testamento, qualquer noção de criar algo do nada, pelo simples fato de que a mitologia
de criação hebraica não é essencialmente diferente de praticamente todas as demais cosmogêneses do mundo, que sempre
apresentam deuses criando o mundo a partir de algo pré-existente. A idéia de Creatio Ex-Nihilo foi inventada
pelos primeiros teólogos cristãos com o objetivo de radicalizar a distinção entre o cristianismo e as demais mitologias
e filosofias vigentes, pregando que somente Deus tinha a prerrogativa da existência perene, colocando-o muito acima
da noção mais comum de um "demiurgo" ordenador, que dividia sua pré-existência com a matéria caótica.
"Criação", como entende a teologia, é uma invenção dos fundadores da Igreja, e só parece estar indiretamente na
Bíblia em termos gregos no novo testamento, que já estavam convergindo para uma nova noção neoplatônica, ou em livros
apócrifos.
Isso, no entanto, não neutraliza a contenda Criacionismo e Evolucionismo, apenas mostra como ela é em grande parte equivocada.
Por sorte, os próprios criacionistas deram uma contribuição útil para delimitar bem o problema, colocando a questão
entre a
TEORIA DA ÚNICA ANCESTRALIDADE COMUM e a das
MÚLTIPLAS ANCESTRALIDADES SEPARADAS, ou outros termos equivalentes.
Para um exemplo de um texto criacionista sério que trata desta distinção veja
PROBLEMAS BIOLÓGICOS NA EVOLUÇÃO, que tem a honestidade de abordar
o assunto com a metodologia e o respeito necessários a qualquer questionamento civilizado.
O ANTI-EVOLUCIONISMO
Uma leitura atenta deve ter percebido que estou tecendo aqui uma analogia contra a acusação de o Evolucionismo seja
uma "teoria conspiratória". É simples, ele não foi "criado", isto é, inventado pela ação intencional de um grupo de
iluminados com o propósito de atacar a tradição religiosa. Basicamente porque ele apenas, sempre tendo existido, evoluiu,
até encontrar um ambiente favorável onde pôde se reproduzir em larga escala.
Esse ambiente foi a nova intelectualidade, resultado direto do renascimento e do iluminismo, esses sim, os atores diretos
da derrocada do mundo medieval e da supremacia absoluta do pensamento teocêntrico. Quando os poderes clericais enfraqueceram
na sociedade, em parte por sua própria atividade, passou a haver cada vez mais espaço para novas formas de pensamento,
em especial com rupturas conceituais e "revoluções" de mentalidade. O evolucionismo, tanto no sentido mais amplo, quanto no
estrito sentido biológico, é só mais um dos subprodutos desse processo histórico, que, deve-se admitir, tem como uma das
pedras fundamentais a Reforma Protestante.
Infelizmente os criacionistas são tão dados à teorias da conspiração que muitas vezes insistem em dizer que houve uma
arquitetura (não raro levando o adjetivo "satânica") deliberada com o objetivo único de, como um certo livro dos
russelitas diz, dar um duro golpe na religião. Mas é ainda mais impressionante ver acusações de que tal conspiração esteja
envolvida numa trama que visa atingir o Poder Político!
Se os criacionistas percebessem o quanto essa idéia depõem contra eles próprios, provavelmente desistiriam de divulgá-la.
É que ao insistir nela, parecem perder de vista duas coisas.
A PRIMEIRA é que se tal conspiração
tivesse existido, teria sido muito mal sucedida, pois cientistas e filósofos quase nunca estão envolvidos com os poderes
políticos, e a força da religião no mundo ainda é avassaladora. A grande maioria das pessoas ainda é religiosa, acredita
em Deus e segue rituais e direcionamentos de seus líderes com afinco. Ao mesmo tempo, o conhecimento científico continua
restrito e mal divulgado. A visão que a maioria das pessoas tem da ciência ainda é equivocada.
Para refletir sobre o grau de desvantagem que a ciência leva em relação à religiosidade, pensemos no fato de que é difícil
achar alguém que não deva sua vida ou sua saúde diretamente a algum avanço científico, quer sejam vacinas, remédios,
prevenção pré-natal ou tratamentos médicos. E é impossível achar alguém que não o deva indiretamente,
como por exemplo sendo descendente de alguém que o deva diretamente.
Todavia, apesar milhões de vidas serem salvas todos os dias, apesar de diversas doenças terem sido erradicadas e ter-se
achado a cura para toda a sorte de males, a maior parte da população não nutre o menor senso de agradecimento pela medicina,
pelo método científico ou pelos pesquisadores que dedicam suas existências para melhorar a qualidade de vida humana. Nem mesmo
para as políticas sociais de saúde pública e muito menos pelas empresas públicas ou privadas que disponibilizam todos os
dias todo tipo de inovação e solução de problemas de saúde acessíveis até para os mais pobres, mas que seriam inconcebíveis
até para os mais ricos da antiguidade.
Por outro lado, as igrejas continuam lotadas, algumas enriquecendo fabulosamente, pastores, padres, mulás, monges,
curandeiros, médiuns e pais e mães de santo continuam firmes e fortes como os grandes benfeitores. Quando uma solução
medicinal e científica é eficaz em resolver algum problema grave, na maioria das vezes não existe qualquer consideração
benevolente pela verdadeira origem dessa solução, mas o santo recebe a penitência do fiel, a igreja ganha doações e
os deuses continuam sendo os grandes alvos de agradecimento.
Pergunte-se honestamente. Em nossa sociedade, a mãe que estava prestes a perder seu filho, e que de repente, o tem salvo por
uma repentina novidade medicinal, tem mais probabilidade de fazer o quê em seguida? Doar dinheiro para instituições
científicas ou para sua Igreja? Peregrinar até os autores da novidade ou até um local sagrado? Testemunhar sua história com
final feliz para convencer vestibulandos a cursar medicina ou biologia, ou para convencer jovens laicos a acreditar em
milagres?
Digo isso não para repreender essas posturas, mas para mostrar o quanto o poder da religião continua forte em nossa sociedade,
mesmo diante de novas formas de conhecimento muitíssimo mais poderosas no sentido material. E ainda assim, a grande maioria
das pessoas que procuram religiões estão em busca de soluções para problemas materiais ou sociais.
Portanto, isso mostra que a suposta conspiração anti-religiosa teria tido um péssimo desempenho. Mas essa primeira
explicação só se mostra eficaz quanto entrelaçada com a próxima.
A SEGUNDA é que considerando que a modesta embora significativa redução do poder religioso na
sociedade seja quase totalmente na esfera política, na questão da separação entre Religião e Estado, e considerando o
quanto os conservadores reclamam, então fica evidente qual é de fato o motivo por trás de todas as ações que visam recuperar
o prestígio da religiosidade.
O que se lamenta é EXATAMENTE a perda do poder político! Que as religiões mais ativas no
criacionismo tem se esforçado, com notável êxito, para recuperar. O que as religiões perderam de fato, foi o poder de
influenciar ou determinar os poderes seculares de modo direto. O que a investida anti-evolucionista está de fato fazendo
é tentando propor argumentos, meios e caminhos para apontar para uma recuperação do poder político por parte das religiões
tradicionais, no nosso caso, do Cristianismo.
Com esses poderes recuperados, o Fundamentalismo Religioso não precisaria perder seu tempo forjando simulacros de ciência
para legitimar suas crenças. Bastaria usar a força.
EXISTE CONSPIRAÇÃO?
Mas por que os criacionistas, e conservadores em geral, insistem tanto na "Teoria da Conspiração" que envolve, entre outras
coisas, o Evolucionismo?
Simples. Quando se tem algumas idéias contrárias à algumas de nossas crenças, podemos conviver com esse pequeno incômodo.
Mas quanto se tem não algumas, mas sistemas inteiros, complexos, interligados coerentemente e vastamente inteligentes
desafiando nossas crenças, somos induzidos a abandoná-las ou a fortalecê-las.
Analogizando, se existe uma evidência mediana incriminando uma pessoa, esta evidência pode estar apenas equivocada. Mas
se há um vasto e sólido conjunto de evidências, consideradas juridicamente como provas, fica difícil escapar de
3 possibilidades básicas.
Uma, a de que as evidências estejam corretas e a pessoa seja mesmo culpada;
Outra, uma incrível coincidência;
Mas se a pessoa não quer ser culpada e não é satisfatória a alegação de coincidência, há uma
Terceira possibilidade
frequentemente invocada. Dizer que foi uma Armação! O que evidentemente é possível!
Portanto, considerando que as vastas evidências científicas a favor do evolucionismo induzem a uma leitura não literal
da Gênese bíblica (que curiosamente muitos segmentos cristãos já não faziam ficando então ilesos), só resta então:
1. Ceder a essa indução;
2. Proclamar que tudo não passa de coincidências altamente improváveis (o que os criacionistas adoram
dizer que não aceitam);
3. Ou enfim declarar que tudo não passa de uma bem orquestrada operação para desacreditar a religiosidade.
Enfim: A Teoria de Conspiração é uma expediente pateticamente previsível quando alguém não quer admitir
que está errado apesar de uma vasta gama de evidências contrárias. É a única coisa capaz de explicar como pode haver
tantos indícios favoráveis a uma Teoria Científica que seja desinteressante.
Inconformados com o fato de que vieses religiosos não mais controlam diretamente o poder estatal, civil e militar, os
conservadores promovem uma série de campanhas na tentativa de reagir aos progressos históricos que romperam o poder direto
da religião sobre o estado. A REvolução Biológica, é só um desses progressos históricos, no campo
do conhecimento científico, que por azar entra em contraste com uma forma particular de interpretação literal da Gênese.
Basta não confundir o fato de que a Evolução Biológica em si seja um progresso na história da ciência, com o equívoco de
que ela pregue um "progresso" na história da evolução natural.
Convencidos de que somente sua própria interpretação é válida, e que por algum motivo misterioso é imprescindível,
a contra revolução criacionista lança mão de todos os recursos possíveis para resistir à essa nova visão, que exigiria
uma interpretação simbólica.
O mais curioso, é que não é preciso o empurrão da ciência para que a Interpretação Simbólica da gênese seja claramente a opção mais plausível. Basta um exame puramente teológico.
A GÊNESE: UMA ALEGORIA
Tendo explicado que a alegação de conspiração é previsível e ineficiente, e que o evolucionismo é o resultado espontâneo
do simples desdobramento histórico, finalizo adicionando uma explicação de por que a interpretação da gênese, independente
de levarmos em conta as teorias naturalistas, faz muito mais sentido a nível simbólico. Em parte, já abordei este tema em
Um Desrespeito à Gênese, mas aqui focarei uma abordagem distinta, já esboçada na resposta à
Mensagem 244.
A Bíblia começa em Genesis e termina em Apocalipse, que são os extremos,
o início e o fim. Tudo o que está entre esses extremos é a história e o tempo, tudo o que está fora está além da história,
além da revelação, oculto ao conhecimento humano, eterno, e por consequência, inacessível. Especialmente, devemos lembrar,
os eventos mais sobrenaturais da Gênese, os 19 primeiros capítulos, que abrangem a Criação, o Dilúvio, a Torre de Babel e
a destruição de Sodoma e Gomorra. Daí em diante, embora continue a haver descrições fantásticas, elas não são comparáveis
aos descritos do capítulo 1 ao 19.
Essa inacessibilidade resulta em impossibilidade de ser compreendido, estando além da razão, e tudo que está além da esfera
racional só pode ser simbolicamente tangenciado. Ora, uma porta tem que compartilhar características dos dois lados que
separa. A porta da rua interage com o interior e também com o exterior, e da mesma forma, Gênese
e Apocalipse são as portas da Bíblia, separando a revelação, acessível à humanidade, da Eternidade,
fechada ao conhecimento humano.
Por tangenciar o incognoscível, essas portas compartilham parte dessa incognoscibilidade, e essa não cognoscibilidade, essa
impossibilidade de ser conhecido, se expressa na impossibilidade de ser descrito. E se não pode ser descrito, só pode ser
indiretamente representado, e não há forma mais comum de representação do indizível do que a descrição simbólica, que
seguramente é de difícil interpretação. Na realidade, gerará inúmeras interpretações distintas, e será muito difícil escolher
uma em detrimento das outras.
Mas uma coisa fica estabelecida, tem que haver interpretação! A leitura literal não é, na realidade, uma interpretação,
e tanto no caso da Gênese quanto do Apocalipse, destrói qualquer
sentido transcendente por trás do texto.
Seria possível que em pleno século XXI alguém esperasse que as estrelas caíssem literalmente do céu como se fossem frutos
de figueira sacudida? Que 4 anjos fiquem de pé nos 4 cantos da Terra? Que sejam tocadas trombetas no céu e sejam abertos
selos? É evidente que tudo isso é uma linguagem figurativa. E se é assim no fim da Bíblia, a fronteira entre o fim do tempo
e a eternidade, porque não seria na fronteira desta com o começo do tempo? Os primeiros capítulos da
Gênese?
Mais estranho nas interpretações literais é o fato de que elas não são, afinal, totalmente literais. Mesmo os fundamentalistas
cristãos criadores do literalismo e inerrância da Gênese tem sua conta de interpretação simbólica, caso contrário, a teologia
seria insustentável, visto que não seria Satanás o responsável pela queda de Adão e Eva, mas sim uma serpente falante que
era o mais astuto dos animais do Éden.
É notável também que no restante da Bíblia, A partir de cerca da metade do Gênese até Judas, a interpretação literal
realmente é a predominante, visto que se fala em grande parte do tempo em eventos tidos como históricos. Evidentemente, há
oscilações entre literalidade e simbolismo, visto haver parábolas, sonhos proféticos e visões transcendentes em geral, bem
como diversas alegorias. Mesmo assim, não é estranho que a tendência geral seja literalidade, visto que aí estamos dentro
do tempo do mundo, acessível ao conhecimento humano.
Mas a mesma interpretação predominante não pode ser aplicada aos extremos, que tangenciam a eternidade.
Pode ser coincidência que o Apocalipse e os 19 primeiros capítulo de
Genesis tenham praticamente o mesmo tamanho, cerca de 46 mil caracteres. Mas seguramente são os
que possuem a linguagem mais enigmática, os eventos mais literalmente improváveis, e a maior densidade hermenêutica.
Que isso tornasse a interpretação simbólica apenas opcional na antiguidade, era compreensível, ainda que nenhum
dos grandes teólogos do cristianismo tenha lido a Gênese literalmente. Mas diante de nossos
conhecimentos atuais, a interpretação simbólica, como já o faz o Catolicismo, passa de desejável a inevitável, a não ser
para aqueles que insistem numa batalha perdida contra o conhecimento científico no terreno onde este é imbatível.
A natureza.
Marcus Valerio XR
13 de Março a 2 de Abril de 2009
A EVOLUÇÃO DO CRIACIONISMO