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A "Criação" do EVOLUCIONISMO UMA CONSPIRAÇÃO?
Entre todas as acusações injustas que criacionistas fazem ao Evolucionismo, há uma que, mesmo por vezes exagerada, e em
si acertada. A de que a idéia de evolução se espalhou para quase todas as áreas do conhecimento humano, produção cultural
e mesmo senso comum. Acusam isso de ser uma espécie de revolução conspiratória para abalar as bases do pensamento religioso,
especialmente o cristão, que tem como fundamento a idéia de um ser imutável, e valores fixos e inalteráveis no tempo.
Teria sido o Evolucionismo uma "Criação" deliberada com o objetivo de ser uma força reformadora de valores na sociedade?
Ou seria resultado da pura e simples Evolução Histórica? Vejamos porque apesar de ter sido uma Revolução no pensamento,
o Evolucionismo não é bem entendido como tendo sido "criado" para fins conspiratórios.
Uma explicação bem melhor é que quando um conceito teórico simples vai ao encontro de noções populares
intuitivas mas nunca antes bem formuladas, o resultado costuma ser um casamento bastante bem sucedido. Tal como
ocorreu, por exemplo, com a Teoria da Relatividade. A maioria das pessoas tem uma experiência pessoal que permite dizer da
"relatividade psicológica" do tempo, quando isso casa com uma idéia correlata proveniente de uma fonte tida como respeitável,
mesmo que resulte numa mistura equivocada (no caso confundindo relatividade física com perceptiva), a tendência é haver uma
receptação irresistível.
Recentemente ocorreu algo similar com as idéias da Física Quântica. Correntes místicas se aproveitaram de algumas
similaridades entre essa nova revolução científica e conteúdos filosóficos de tradições orientais, tentando obter uma
nova validação. O resultado foi que a grande maioria do que a população leiga "sabe" sobre Física Quântica aprendeu
em fontes místicas, o que não impediu uma enorme popularização do conceito.
Assim se deu com a idéia de evolução, tanto no sentido equivocado de progresso, quanto no sentido mais acertado
de mera transformação. Como Progresso, a idéia foi enfatizada por várias correntes de pensamento
de teor Positivista, e usada para validar iniciativas reformatórias na sociedade.
E no sentido de mera Transformação, e óbvia para qualquer ser pensante a mudança que ocorre
à nossa volta, em nosso tempo de vida, bem como as que podemos inferir dos relatos de nossos ancestrais e dos livros. É
fácil aceitar que as coisas se transformam constantemente, apesar de respeitarem regularidades. Isso está em nossa
experiência. Outrora, a falta de maior conhecimento sobre a natureza permitia a ilusão de que algumas coisas eram perpétuas
e imutáveis, como as montanhas, astros e ciclos naturais, gerando até mesmo a crença de que sempre tinham existido.
As coisas nem sempre existiram. Pelo menos nesse ponto criacionistas e evolucionistas concordam. Os últimos graças a
evidências inferidas da natureza, os primeiros porque a Bíblia assim o disse.
TUDO EVOLUI
Apesar do senso comum se equivocar muito sobre o real significado de Evolução Biológica, e sobre diversas outras
coisas, não tem dificuldade em admitir que a maioria das coisas muda, ainda que algumas outras possam parecer estáveis.
Estimuladas a ir além das aparências por uma fonte de autoridade intelectual, e sem se sentir ameaçadas por pensarem diferente,
as pessoas não tem maiores problemas de aceitar novas visões de mundo após uma ou duas gerações. E isso não é
novidade. Outrora, o cristianismo conduziu o imaginário de milhões de pessoas por mais de mil anos, mas, como tudo muda,
isso também tinha que mudar.
Sendo destronada a religião como fonte explicativa dos fenômenos naturais, a tendência espontânea foi a adoção de
novos parâmetros de pensamento. A idéia de evolução sempre esteve latente no imaginário humano, só precisava ser
despertada e encorajada, e não ser oprimida por uma idéia contrária apoiada não apenas numa autoridade intelectual, mas
também no autoritarismo político. Lembre-se que Hoje pode-se ou não crer na criação divina livremente,
com no máximo algum prejuízo acadêmico. No passado, descrer da criação divina podia por a vida em risco.
Essa revolução de pensamento resultou de processos que mudaram o mundo, pondo fim aos governos autocráticos de
tiranos divinos, escravidão, androcentrismo, monopólio religioso, mercantilismo e todas as formas de opressão pós-medieval
que atormentaram a humanidade por mil anos, com base na idéia de que as coisas jamais deveriam mudar, que eram leis
sagradas que deviam ser aceitas sem questionamento como ordens naturais, que pretensamente recuavam até a criação.
Criacionistas acusam esse evolucionismo de senso comum de ter um paradoxo conceitual, ao afirmar que tudo muda, exceto a
própria evolução. Que a evolução seria um conceito absoluto que relativiza tudo, ou que trocaria um absoluto por outro com
vistas ao mesmo objetivo político mantido pela aliança nobreza e clero. Ou pelas palavras de um dos mais perversos textos
sobre o assunto na web:
"...um princípio absoluto -- um dogma religioso-- de uma metafísica relativista. E eis aí uma contradição sintomática e
reveladora: o relativismo fundamenta-se num princípio absoluto!"
(Mais uns poucos comentários sobre o mesmo texto na Resposta da Mensagem 253)
Essa bobagem cai por terra simplesmente lembrando que a evolução em si não é imutável, ela também muda, visto que
as coisas não se transformam sempre da mesma forma. O princípio TAMBÉM seria relativo. Mas, por outro lado, é impossível
formular qualquer modo de pensamento sem um centro de gravidade relativamente estável. Ou seja, tudo muda, mas precisamos
de um parâmetro que, embora mude, não precisamos considerar sua mudança (não precisamos considerar o movimento dos
continentes para traçar nossas viagens e mapas). O que pode criar a ilusão de imutabilidade.
O cristianismo teria em Deus seu centro de gravidade estável, mas não pode monopolizar a necessidade de um, e nem significa
que um sistema de pensamento que tenha um "fundamento" qualquer seja religioso. A diferença é que na ciência, a pressuposição
de que algo sempre existiu mudando de forma, a Matéria por exemplo, é substancialmente diferente da idéia de que
Deus sempre existiu, imutável.
Primeiro porque a Matéria é empírica e indiscutivelmente evidente. Deus não. E depois porque não precisamos remover do Universo
a característica mutacional, que necessariamente é removida de Deus, resultando em inevitável irracionalidade.
(Tema da teologia que cabe ser discutida
noutro lugar.)
Não é preciso Fé para crer que algo sempre existiu! Visto que a própria
razão mostra ser impossível ser de outra forma, uma vez que as coisas simplesmente existem. Se esse algo é a matéria, energia,
força ou alguma divindade, pouco importa.
É preciso Fé para ter certeza que aquilo que sempre existiu é um certo tipo de Deus! Exatamente algo cuja existência não é óbvia e não pode ser
evidenciada de modo algum, e ainda por cima está cheio de características definidas justamente numa época em que quase nada
se sabia sobre o universo, e faz mil e uma exigências de como você deve se comportar, ditando suas preferências filosóficas,
religiosas, políticas e até sexuais, e tratando a humanidade de formas claramente distintas ao longo da história ao mesmo
tempo que diz que é imutável.
Eternidade, Imutabilidade, Perfeição e similares, são conceitos irracionais, pois se supõem estando FORA DO TEMPO. Se algo
está no tempo, está sujeito a mudança, se está fora do tempo é indizível, porque dizer pressupõe tempo, é impensável, porque
pensar pressupõe tempo, é insensível, porque sentir também pressupõe tempo. E enfim não pode SER, porque SER é "aquilo que
é", o que só faz sentido em RELAÇÃO a "aquilo que NÃO é", e se é RELATIVO A ALGO, TAMBÉM PRESSUPÕE TEMPO!
Portanto, sendo absurda a suposta imutabilidade de Deus, não pode ser verificada, nem Ele próprio!
Mas a mutabilidade do universo é verificada a todo instante. Não há um único olhar
histórico que não nos mostre que tudo o que tentamos conservar inalterado resulta em frustração. As coisas sempre se
alteram. Quer gostemos ou não. No máximo, podem resistir mais ou menos. Feliz ou Infelizmente:
"Se é ruim, muda porque tem que melhorar;
Se é bom, muda porque tem que mudar!"
Depois de toda essa digressão, voltemos ao ponto. O Evolucionismo não pode ter sido "criado" num processo conspiratório.
SEGUNDO, porque sempre esteve de certa forma latente, e apenas se manifestou devido a um
contexto histórico favorável. E PRIMEIRO, porque NÃO EXISTE "CRIAÇÃO"!
Comecemos primeiro pelo Segundo Motivo.
EVOLUCIONISMO PRÉ-ILUMINISTA
Apesar da paranóia, de que o Evolucionismo seja uma criação Illuminati, insistir na teoria da
conspiração anti-religiosa, fato é que há indícios de pensamento evolucionista místicos e filosóficos na antiguidade,
tanto no ocidente quanto no oriente.
Na Grécia antiga, o filósofo Anaximandro (610-545 aEC) já dizia que os seres vivos foram gerados na umidade, e que
os animais terrestres tinham evoluído dos animais aquáticos, inclusive os humanos, que teriam ancestrais de forma
intermediária peixe-humano, que depois desapareceram quando os humanos já estavam adaptados à terra.
O filósofo islâmico Al-Jahiz (781-868 dEC) merece um lugar de destaque
na história do evolucionismo, que vem sendo reconhecido recentemente. Como todo filósofo muçulmano, estudou a fundo as
obras dos gregos, especialmente Aristóteles, era multi disciplinar e recebia de sua religião o endosso e incentivo para a
pesquisa científica.
Ele escreveu uma obra chamada Kitab al-Hayawan, "O Livro dos Animais", uma enciclopédia que descrevia mais de 350
espécies classificando-as em ordens de complexidade, onde faz reflexões evolucionistas incrivelmente similares ao que se
faria na Europa do futuro.
Segue abaixo um trecho de sua obra, que pode ser absolutamente espantosa em termos de conteúdo:
"Os animais se envolvem numa luta pela existência, e por recursos, para evitar serem comidos, e para procriar.
Fatores ambientais influenciam os organismos a desenvolver novas características para garantir a sobrevivência,
transformando-os, assim, em novas espécies. Os animais que sobrevivem para procriar podem passar suas
bem sucedidas características para seus descendentes."
(Islam's evolutionary legacy)
Difícil saber o que mais impressiona, a incrível similaridade, ou o fato do eurocentrismo ser tão forte a ponto de tornar
esse pensador desconhecido mesmo entre os melhores evolucionistas. Há uma controvérsia a respeito do Kitab al-Hayawan
ser apenas uma tradução comentada de obras perdidas de Aristóteles, mas isso pouco importa, visto que apenas deslocaria
esse evolucionismo pré-iluminista de tempo e lugar.
Também há mitos evolucionistas, em especial o mito tibetano pré-budista de
Avalokitesvara, onde os humanos são descendentes de
gerações de macacos que foram gradativamente perdendo a cauda e os pêlos.
E na África, entre as tribos que conhecem os grandes macacos (gorilas, chimpanzés, bonobos e orangotangos),
há lendas locais sobre o parentesco entre humanos e primatas.
Evidentemente que onde quer que os primatas superiores tenham sido conhecidos, as evidentes
semelhanças com os humanos não poderiam passar desapercebidas, e é altamente provável que se outros sábios antigos tivessem
tido maior contato com esses animais, poderiam ter desenvolvidos hipóteses semelhantes.
É interessante observar também que o Evolucionismo Darwinista sofreu críticas não somente do Criacionismo, mas também de
outras formas de Evolucionismo, em especial o Lamarckista, que competiu no cenário científico até meados do século XX.
Também foi duramente criticado pelos Teosofistas, liderados pela mística H.P. Blavatsky, que tinha sua própria versão
de evolucionismo mitológico, no qual a humanidade era a quinta raça de uma linhagem de espécies ancestrais que, porém,
eram consideradas como seres mais avançados.
Esse evolucionismo teosófico, que poderia até ser chamado de Involucionismo, invertia a noção
equivocada de progresso, mas de qualquer modo também pregava a transformação das espécies através do tempo, com base
em mitos orientais, inclusive tibetanos. Porém, estabelecia uma sequência de "quedas" a partir de uma primeira raça
de nome muito disputado, passando pela "Hiperbórea", "Lemuriana" e "Atlante", até chegar na atual, "Ariana". Que é
exatamente o que parece.
E, por fim, muitos também se surpreendem ao descobrir na própria Bíblia um mito evolucionista, mais especificamente
em Gênesis 30:32-43, onde se crê que características do ambiente determinam as características das espécies por meio
de um versão primitiva de lamarckismo.
Portanto, podemos ver que a idéia de Evolução Biológica sempre foi latente, e provavelmente só não emergiu anteriormente
devido a pressão dominante do criacionismo cristão que dominou parte da antiguidade, toda a Idade Média, e ainda grande
parte da Modernidade. Só mesmo a força de uma ideologia religiosa para anular uma noção de tanto potencial, e foi o
enfraquecimento dessa ideologia que permitiu espaço para que novas idéias surgissem, e ressurgissem.
Não foi a "criação" do evolucionismo que enfraqueceu, ou pretendeu enfraquecer a tradição religiosa, mas sim a inevitável
evolução histórica, ao enfraquecer a já desgastada tradição religiosa, que permitiu o desenvolvimento de idéias evolutivas,
que em grande parte podem ser consideradas naquele momento até óbvias, pelo óbvio motivo seguinte, que é na verdade
o primeiro em importância.
Ou, se existe, ESTÁ COMPLETAMENTE FORA DE NOSSA EXPERIÊNCIA! Isso é inegável se tivermos em mente
o significado literal de "Criação", que é o de Creatio Ex-Nihilo, isto é, CRIAÇÃO DO NADA.
Algo que surge de outra coisa sofre uma TRANSFORMAÇÃO, para ser literalmente "Criado" tem que vir do nada. Assim, se a
idéia de evolução vem da pura simples observação da natureza, com suas constantes transformações,
De onde vem a idéia de Criação?
Da Bíblia, certo? ERRADO!
NÃO EXISTE CRIAÇÃO NA BÍBLIA!
Em todo o relato da Gênese, não há, EM LUGAR ALGUM, qualquer menção a idéia de criação a partir do nada! Tudo é, também,
transformado, embora num nível seguramente não observado na natureza. A mulher foi feita do homem, o homem foi feito do
barro, assim como todos os animais terrestres e as plantas. Os animais aquáticos foram feitos da água, e os aéreos do ar.
Tudo isso está claro no primeiro capítulo do primeiro livro da Bíblia.
Mas de onde vieram a terra, o ar e mar?
Das Águas! Ou melhor dizendo, de uma matriz primordial de matéria, um CAOS perene,
que é representado pela palavra hebraica mayim que é sempre traduzida como "águas", no plural, e que também pode
ter significado de "sêmen", ou seja, uma fonte primordial de matéria.
Como se vê claramente na Gênese, os Céus e a Terra foram criados dessas "águas", ou, podemos dizer, separados dela,
visto que um Caos é exatamente uma fonte original de elementos misturados. Note que no versículo 7 é dito que Deus fez uma
separação das águas de cima e das águas de baixo, que é o firmamento (raqiya`), uma "bolha" entre as águas,
à qual chamou shamayim (Céus).
E nos versículos 9 e 10 separou as águas abaixo dos Céus extraindo o elemento seco (yabbashah), ao qual chamou
"terra", enquanto o restante das águas foram consideradas thowm (abismo), que é a soma do mar e das águas
subterrâneas, as águas inferiores, e yam que é somente o "mar". E em nenhum momento é dito que as Águas originais
foram criadas.
O termo hebraico normalmente traduzido como "criar" é bara', que também pode ser traduzido como "produzir",
"fabricar", "selecionar" etc. Ou seja, é "criar" num sentido mais genérico, que nada mais é do que transformar, assim
como nós, ao dizer que "criamos" algo, apenas realizamos uma série de transformações.
Portanto, não há em todo o Velho Testamento, qualquer noção de criar algo do nada, pelo simples fato de que a mitologia
de criação hebraica não é essencialmente diferente de praticamente todas as demais cosmogêneses do mundo, que sempre
apresentam deuses criando o mundo a partir de algo pré-existente. A idéia de Creatio Ex-Nihilo foi inventada
pelos primeiros teólogos cristãos com o objetivo de radicalizar a distinção entre o cristianismo e as demais mitologias
e filosofias vigentes, pregando que somente Deus tinha a prerrogativa da existência perene, colocando-o muito acima
da noção mais comum de um "demiurgo" ordenador, que dividia sua pré-existência com a matéria caótica.
"Criação", como entende a teologia, é uma invenção dos fundadores da Igreja, e só parece estar indiretamente na
Bíblia em termos gregos no novo testamento, que já estavam convergindo para uma nova noção neoplatônica, ou em livros
apócrifos.
Isso, no entanto, não neutraliza a contenda Criacionismo e Evolucionismo, apenas mostra como ela é em grande parte equivocada.
Por sorte, os próprios criacionistas deram uma contribuição útil para delimitar bem o problema, colocando a questão
entre a
TEORIA DA ÚNICA ANCESTRALIDADE COMUM e a das
MÚLTIPLAS ANCESTRALIDADES SEPARADAS, ou outros termos equivalentes.
Para um exemplo de um texto criacionista sério que trata desta distinção veja
PROBLEMAS BIOLÓGICOS NA EVOLUÇÃO, que tem a honestidade de abordar
o assunto com a metodologia e o respeito necessários a qualquer questionamento civilizado.
O ANTI-EVOLUCIONISMO
Uma leitura atenta deve ter percebido que estou tecendo aqui uma analogia contra a acusação de o Evolucionismo seja
uma "teoria conspiratória". É simples, ele não foi "criado", isto é, inventado pela ação intencional de um grupo de
iluminados com o propósito de atacar a tradição religiosa. Basicamente porque ele apenas, sempre tendo existido, evoluiu,
até encontrar um ambiente favorável onde pôde se reproduzir em larga escala.
Esse ambiente foi a nova intelectualidade, resultado direto do renascimento e do iluminismo, esses sim, os atores diretos
da derrocada do mundo medieval e da supremacia absoluta do pensamento teocêntrico. Quando os poderes clericais enfraqueceram
na sociedade, em parte por sua própria atividade, passou a haver cada vez mais espaço para novas formas de pensamento,
em especial com rupturas conceituais e "revoluções" de mentalidade. O evolucionismo, tanto no sentido mais amplo, quanto no
estrito sentido biológico, é só mais um dos subprodutos desse processo histórico, que, deve-se admitir, tem como uma das
pedras fundamentais a Reforma Protestante.
Infelizmente os criacionistas são tão dados à teorias da conspiração que muitas vezes insistem em dizer que houve uma
arquitetura (não raro levando o adjetivo "satânica") deliberada com o objetivo único de, como um certo livro dos
russelitas diz, dar um duro golpe na religião. Mas é ainda mais impressionante ver acusações de que tal conspiração esteja
envolvida numa trama que visa atingir o Poder Político!
Se os criacionistas percebessem o quanto essa idéia depõem contra eles próprios, provavelmente desistiriam de divulgá-la.
É que ao insistir nela, parecem perder de vista duas coisas.
A PRIMEIRA é que se tal conspiração
tivesse existido, teria sido muito mal sucedida, pois cientistas e filósofos quase nunca estão envolvidos com os poderes
políticos, e a força da religião no mundo ainda é avassaladora. A grande maioria das pessoas ainda é religiosa, acredita
em Deus e segue rituais e direcionamentos de seus líderes com afinco. Ao mesmo tempo, o conhecimento científico continua
restrito e mal divulgado. A visão que a maioria das pessoas tem da ciência ainda é equivocada.
Para refletir sobre o grau de desvantagem que a ciência leva em relação à religiosidade, pensemos no fato de que é difícil
achar alguém que não deva sua vida ou sua saúde diretamente a algum avanço científico, quer sejam vacinas, remédios,
prevenção pré-natal ou tratamentos médicos. E é impossível achar alguém que não o deva indiretamente,
como por exemplo sendo descendente de alguém que o deva diretamente.
Todavia, apesar milhões de vidas serem salvas todos os dias, apesar de diversas doenças terem sido erradicadas e ter-se
achado a cura para toda a sorte de males, a maior parte da população não nutre o menor senso de agradecimento pela medicina,
pelo método científico ou pelos pesquisadores que dedicam suas existências para melhorar a qualidade de vida humana. Nem mesmo
para as políticas sociais de saúde pública e muito menos pelas empresas públicas ou privadas que disponibilizam todos os
dias todo tipo de inovação e solução de problemas de saúde acessíveis até para os mais pobres, mas que seriam inconcebíveis
até para os mais ricos da antiguidade.
Por outro lado, as igrejas continuam lotadas, algumas enriquecendo fabulosamente, pastores, padres, mulás, monges,
curandeiros, médiuns e pais e mães de santo continuam firmes e fortes como os grandes benfeitores. Quando uma solução
medicinal e científica é eficaz em resolver algum problema grave, na maioria das vezes não existe qualquer consideração
benevolente pela verdadeira origem dessa solução, mas o santo recebe a penitência do fiel, a igreja ganha doações e
os deuses continuam sendo os grandes alvos de agradecimento.
Pergunte-se honestamente. Em nossa sociedade, a mãe que estava prestes a perder seu filho, e que de repente, o tem salvo por
uma repentina novidade medicinal, tem mais probabilidade de fazer o quê em seguida? Doar dinheiro para instituições
científicas ou para sua Igreja? Peregrinar até os autores da novidade ou até um local sagrado? Testemunhar sua história com
final feliz para convencer vestibulandos a cursar medicina ou biologia, ou para convencer jovens laicos a acreditar em
milagres?
Digo isso não para repreender essas posturas, mas para mostrar o quanto o poder da religião continua forte em nossa sociedade,
mesmo diante de novas formas de conhecimento muitíssimo mais poderosas no sentido material. E ainda assim, a grande maioria
das pessoas que procuram religiões estão em busca de soluções para problemas materiais ou sociais.
Portanto, isso mostra que a suposta conspiração anti-religiosa teria tido um péssimo desempenho. Mas essa primeira
explicação só se mostra eficaz quanto entrelaçada com a próxima.
A SEGUNDA é que considerando que a modesta embora significativa redução do poder religioso na
sociedade seja quase totalmente na esfera política, na questão da separação entre Religião e Estado, e considerando o
quanto os conservadores reclamam, então fica evidente qual é de fato o motivo por trás de todas as ações que visam recuperar
o prestígio da religiosidade.
O que se lamenta é EXATAMENTE a perda do poder político! Que as religiões mais ativas no
criacionismo tem se esforçado, com notável êxito, para recuperar. O que as religiões perderam de fato, foi o poder de
influenciar ou determinar os poderes seculares de modo direto. O que a investida anti-evolucionista está de fato fazendo
é tentando propor argumentos, meios e caminhos para apontar para uma recuperação do poder político por parte das religiões
tradicionais, no nosso caso, do Cristianismo.
Com esses poderes recuperados, o Fundamentalismo Religioso não precisaria perder seu tempo forjando simulacros de ciência
para legitimar suas crenças. Bastaria usar a força.
EXISTE CONSPIRAÇÃO?
Mas por que os criacionistas, e conservadores em geral, insistem tanto na "Teoria da Conspiração" que envolve, entre outras
coisas, o Evolucionismo?
Simples. Quando se tem algumas idéias contrárias à algumas de nossas crenças, podemos conviver com esse pequeno incômodo.
Mas quanto se tem não algumas, mas sistemas inteiros, complexos, interligados coerentemente e vastamente inteligentes
desafiando nossas crenças, somos induzidos a abandoná-las ou a fortalecê-las.
Analogizando, se existe uma evidência mediana incriminando uma pessoa, esta evidência pode estar apenas equivocada. Mas
se há um vasto e sólido conjunto de evidências, consideradas juridicamente como provas, fica difícil escapar de
3 possibilidades básicas.
Uma, a de que as evidências estejam corretas e a pessoa seja mesmo culpada;
Outra, uma incrível coincidência;
Mas se a pessoa não quer ser culpada e não é satisfatória a alegação de coincidência, há uma
Terceira possibilidade
frequentemente invocada. Dizer que foi uma Armação! O que evidentemente é possível!
Portanto, considerando que as vastas evidências científicas a favor do evolucionismo induzem a uma leitura não literal
da Gênese bíblica (que curiosamente muitos segmentos cristãos já não faziam ficando então ilesos), só resta então:
1. Ceder a essa indução;
2. Proclamar que tudo não passa de coincidências altamente improváveis (o que os criacionistas adoram
dizer que não aceitam);
3. Ou enfim declarar que tudo não passa de uma bem orquestrada operação para desacreditar a religiosidade.
Enfim: A Teoria de Conspiração é uma expediente pateticamente previsível quando alguém não quer admitir
que está errado apesar de uma vasta gama de evidências contrárias. É a única coisa capaz de explicar como pode haver
tantos indícios favoráveis a uma Teoria Científica que seja desinteressante.
Inconformados com o fato de que vieses religiosos não mais controlam diretamente o poder estatal, civil e militar, os
conservadores promovem uma série de campanhas na tentativa de reagir aos progressos históricos que romperam o poder direto
da religião sobre o estado. A REvolução Biológica, é só um desses progressos históricos, no campo
do conhecimento científico, que por azar entra em contraste com uma forma particular de interpretação literal da Gênese.
Basta não confundir o fato de que a Evolução Biológica em si seja um progresso na história da ciência, com o equívoco de
que ela pregue um "progresso" na história da evolução natural.
Convencidos de que somente sua própria interpretação é válida, e que por algum motivo misterioso é imprescindível,
a contra revolução criacionista lança mão de todos os recursos possíveis para resistir à essa nova visão, que exigiria
uma interpretação simbólica.
O mais curioso, é que não é preciso o empurrão da ciência para que a Interpretação Simbólica da gênese seja claramente a opção mais plausível. Basta um exame puramente teológico.
Tendo explicado que a alegação de conspiração é previsível e ineficiente, e que o evolucionismo é o resultado espontâneo
do simples desdobramento histórico, finalizo adicionando uma explicação de por que a interpretação da gênese, independente
de levarmos em conta as teorias naturalistas, faz muito mais sentido a nível simbólico. Em parte, já abordei este tema em
Um Desrespeito à Gênese, mas aqui focarei uma abordagem distinta, já esboçada na resposta à
Mensagem 244.
A Bíblia começa em Genesis e termina em Apocalipse, que são os extremos,
o início e o fim. Tudo o que está entre esses extremos é a história e o tempo, tudo o que está fora está além da história,
além da revelação, oculto ao conhecimento humano, eterno, e por consequência, inacessível. Especialmente, devemos lembrar,
os eventos mais sobrenaturais da Gênese, os 19 primeiros capítulos, que abrangem a Criação, o Dilúvio, a Torre de Babel e
a destruição de Sodoma e Gomorra. Daí em diante, embora continue a haver descrições fantásticas, elas não são comparáveis
aos descritos do capítulo 1 ao 19.
Essa inacessibilidade resulta em impossibilidade de ser compreendido, estando além da razão, e tudo que está além da esfera
racional só pode ser simbolicamente tangenciado. Ora, uma porta tem que compartilhar características dos dois lados que
separa. A porta da rua interage com o interior e também com o exterior, e da mesma forma, Gênese
e Apocalipse são as portas da Bíblia, separando a revelação, acessível à humanidade, da Eternidade,
fechada ao conhecimento humano.
Por tangenciar o incognoscível, essas portas compartilham parte dessa incognoscibilidade, e essa não cognoscibilidade, essa
impossibilidade de ser conhecido, se expressa na impossibilidade de ser descrito. E se não pode ser descrito, só pode ser
indiretamente representado, e não há forma mais comum de representação do indizível do que a descrição simbólica, que
seguramente é de difícil interpretação. Na realidade, gerará inúmeras interpretações distintas, e será muito difícil escolher
uma em detrimento das outras.
Mas uma coisa fica estabelecida, tem que haver interpretação! A leitura literal não é, na realidade, uma interpretação,
e tanto no caso da Gênese quanto do Apocalipse, destrói qualquer
sentido transcendente por trás do texto.
Seria possível que em pleno século XXI alguém esperasse que as estrelas caíssem literalmente do céu como se fossem frutos
de figueira sacudida? Que 4 anjos fiquem de pé nos 4 cantos da Terra? Que sejam tocadas trombetas no céu e sejam abertos
selos? É evidente que tudo isso é uma linguagem figurativa. E se é assim no fim da Bíblia, a fronteira entre o fim do tempo
e a eternidade, porque não seria na fronteira desta com o começo do tempo? Os primeiros capítulos da
Gênese?
Mais estranho nas interpretações literais é o fato de que elas não são, afinal, totalmente literais. Mesmo os fundamentalistas
cristãos criadores do literalismo e inerrância da Gênese tem sua conta de interpretação simbólica, caso contrário, a teologia
seria insustentável, visto que não seria Satanás o responsável pela queda de Adão e Eva, mas sim uma serpente falante que
era o mais astuto dos animais do Éden.
É notável também que no restante da Bíblia, A partir de cerca da metade do Gênese até Judas, a interpretação literal
realmente é a predominante, visto que se fala em grande parte do tempo em eventos tidos como históricos. Evidentemente, há
oscilações entre literalidade e simbolismo, visto haver parábolas, sonhos proféticos e visões transcendentes em geral, bem
como diversas alegorias. Mesmo assim, não é estranho que a tendência geral seja literalidade, visto que aí estamos dentro
do tempo do mundo, acessível ao conhecimento humano.
Mas a mesma interpretação predominante não pode ser aplicada aos extremos, que tangenciam a eternidade.
Pode ser coincidência que o Apocalipse e os 19 primeiros capítulo de
Genesis tenham praticamente o mesmo tamanho, cerca de 46 mil caracteres. Mas seguramente são os
que possuem a linguagem mais enigmática, os eventos mais literalmente improváveis, e a maior densidade hermenêutica.
Que isso tornasse a interpretação simbólica apenas opcional na antiguidade, era compreensível, ainda que nenhum
dos grandes teólogos do cristianismo tenha lido a Gênese literalmente. Mas diante de nossos
conhecimentos atuais, a interpretação simbólica, como já o faz o Catolicismo, passa de desejável a inevitável, a não ser
para aqueles que insistem numa batalha perdida contra o conhecimento científico no terreno onde este é imbatível.
A natureza.
Marcus Valerio XR
13 de Março a 2 de Abril de 2009
A EVOLUÇÃO DO CRIACIONISMO
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