ÉTICA E EVOLUÇÃO
Qual a Relação?

Um dos mais fortes motivadores da investida anti-evolucionista não só nada tem a ver com Ciência, como às vezes sequer tem realmente haver com Religião. Digo isto pelo simples fato de que tal investida é de ordem Ética, e esta última, em si, não tem conexão necessária alguma com Religião. Vide meu texto RÉLICA & ETIGIÃO - Desfazendo a Confusão.

Mas não só devido a isto, pois boa parte de tais investidas sequer partem de pessoas religiosas de fato, as vezes derivam de entusiastas do ativismo político, em geral de esquerda, e entusiastas feministas, e nestes casos muitas vezes não atacando a idéia de Evolução Biológica em si, mas sim somente o Neodarwinismo.

Não são poucos os que, por vezes de modo bem intencionado porém ingênuo, preocupam-se com certas consequências do pensamento evolucionista neodarwinista a nível Moral. Como exemplo, sinceras citações de alguns de meus visitantes:

"Qual é o fundamento para você discernir entre certo e errado, se tudo o que existe é resultado dum acaso gerado apenas pelo processo seletivo?"

" Se eu aceitar o evolucionismo, então que esperança me resta? Não teria obrigação nenhuma com meu semelhante, que seria então meu concorrente e eu seria plenamente justificado se usasse todos os artifícios para deixá-lo para trás, em qualquer aspecto, inclusive matá-lo, pois, afinal, a lei do mais forte é que imperaria, certo?"

É até difícil listar a quantidade de equívocos misturados nessas afirmações, "acaso gerado por processo seletivo", "deixar para trás em qualquer aspecto", "lei do mais forte"...

Por outro lado, certas críticas ao neodarwinismo partem mesmo de cientistas de alto nível, a exemplo de Lynn Margulis e Dorion Sagan, que ao propor a Teria Evolutiva da Simbiogênese, a contrapõem com a idéia equivocada de que a evolução se desse mediante competição extremada. Embora a obra destes cientistas, por sinal a ex-mulher e o filho de Carl Sagan, seja de valor científico indiscutível e represente inestimável contribuição ao pensamento evolutivo, sou da opinião que as críticas ao neodarwinismo são um tanto exageradas.

Graças a brilhantes trabalhos como o de Margulis, expandindo o Evolucionismo para muito além da Teoria Sintética Tradicional, outros pensadores, mesmo que sem má intenção, acabam por acentuar essa má interpretação do neodarwinismo, considerando que o mesmo sirva de justificação para o modelo econômico capitalista, e para a competitividade, não raro predatória, por mercados e poder. Apologistas feministas por vezes temem que a crueza do comportamento dos machos de certas espécies mais próximas à humana sirva também de justificação para um modelo androcrático de dominação social, resultando na opressão das mulheres.

Este texto tem um objetivo muito óbvio. Esclarecer porque tais afirmações são no mínimo ingênuas, e no máximo completamente descabidas, e tais porquês podem ser resumidos basicamente a 3.

1 - Entre o SER e o DEVER

Há uma frase que resume basicamente todo este tema: "Achar que a Evolução Biológica tenha implicações éticas não passa de uma inacreditável incapacidade de distinguir o DESCRITIVO do NORMATIVO." Ou seja, quando estamos dizendo como uma coisa é, não necessariamente estamos dizendo como ela deve ser. Principalmente quando estamos comparando âmbitos diferentes.

Via de regra os evolucionistas estão descrevendo o comportamento dos seres vivos, muitas vezes animais. Por que coisas que se aplicam aos animais e seu universo meramente instintivo deveriam ter qualquer validade para o infinitamente mais complexo universo cultural humano? E ainda que tenham, não é caso que descrever fatos do comportamento animal implique aceitar os mesmos como exemplos a serem seguidos pelos humanos.

É verdade que não raro algumas pessoas forcem essa associação. As mulheres têm toda a razão em reclamar quando certos indivíduos de índole machista usem o argumento do maior potencial masculino quantitativo em participar de diversas fecundações, para justificar sua maior tendência à infidelidade. Pior ainda, quando usam os diversos exemplos de irresponsabilidade paternal encontrados no reino animal, para validar sua conduta mesquinha de abandonar as crianças aos cuidados exclusivos da mãe.

Muitíssimo pior é quando indivíduos agressivos, violentos, criminosos e etc, usem exemplos da violência natural para justificar a própria incompetência humana, e por fim, quando sistemas ideológicos, políticos e etnocêntricos lancem mão de argumentos retirados de estudos biológicos para justificar suas posturas belicosas e opressivas.

Não se pode negar que tudo isso aconteceu em larga escala, e continue acontecendo, ainda que após a Segunda Guerra Mundial os argumentos que se baseavam em biologia para justificar políticas e guerras tenham praticamente desaparecido do discurso público. Porém no âmbito particular, em especial no que se refere às atitudes pessoais, é inegável que tais argumentos ainda sejam utilizados.

É principalmente devido a essa lastimável confusão que muitos críticos do evolucionismo o consideram um pensamento perigoso, no entanto, as más interpretações e maus usos de um sistema teórico não podem servir de justificativa para a negligência do mesmo. Por acaso deveríamos abandonar as pesquisas nucleares devido à possibilidade de se desenvolver armas com elas? Curioso é que se assim fosse somente as pessoas que pretendem usá-la para fins pacíficos abandonariam a pesquisa, pois quem pretende aplicá-la de forma destrutiva certamente não se deteria por argumentos deste tipo.

Ou seja, se o mau uso de um conhecimento justificasse o abandono do mesmo, estaríamos nos condenando a sistemática ignorância, e o pior, abrindo espaço para que somente os maus utilizadores façam uso do mesmo, e consequentemente nos superem em ciência e tecnologia. Enfim, seria condenar o mundo ao domínio dos maus intencionados!

Além disso estaríamos abrindo mão de todos os benefícios desta área de conhecimento negligenciada. Portanto o que deve ser feito é agir com discernimento e bom-senso, não com medo do saber.

Mais curioso ainda é que muitas vezes tais pensamentos vêm por parte de adeptos do Cristianismo, e possivelmente nenhum sistema de idéias ao longo da história tenha sido mais mal utilizado do que este. Deveríamos então, banir o Cristianismo devido as cruzadas, inquisição e caça às bruxas?

Mas talvez o maior problema destes equívocos é terem como base algo um tanto mais profundo e ainda mais ingênuo.

2 - Realismo Normativo Natural

Existem muitas pessoas, provavelmente a maioria, que crêem que as normas de conduta humana devem ser buscadas fora do Ser Humano. Muitos crêem que tais normas derivem de divindades, por isso acham que devemos seguir as diretrizes de sistemas religiosos. Estes são, de certa forma, mais coerentes que os que citarei em seguida, pois pelo menos parece haver sentido na idéia de que deveríamos seguir orientações de seres muitos mais poderosos e pretensamente sábios do que nós.

Os próximos são aqueles que não mais pensam em modos religiosos tradicionais, mas ainda assim acham que devemos seguir uma orientação que esteja fora de nós mesmos. Muitas dessas pessoas crêem que tais orientações estão na Natureza. Alguns filósofos, como Artur Schopenhauer, defenderam com unhas e dentes a idéia de que o mundo natural tenha lições éticas a nos ensinar, e assim, deveríamos investigar a natureza também para descobrirmos como devemos agir.

Tal concepção é muito forte no imaginário New Age ocidental, nos Neofeminismos místicos e wiccanianos, ou nos entusiastas do Neopanteísmo. Sendo assim, uma vez que todas essas pessoas já sabem exatamente quais são os critérios éticos que deveríamos seguir, olham para a natureza e insistem que devem ver tais critérios em operação, e então não podem admitir a crueza, violência e falta de sentido maior que imperam no mundo selvagem.

É comum vermos opiniões desta ordem que afirmem que não exista violência no mundo animal que não seja com exclusivo propósito de sobrevivência, que os animais possuem "instintos de preservação da espécie" ou que não existam estupros.

Fora a evidente falta de conhecimento zoológico de tais concepções, todas se baseiam na idéia de que a natureza tem que ser, de uma certa forma, "perfeita", especialmente em termos éticos, e assim, que devemos nos espelhar nela. Ou seja, na insistente idéia de que devemos buscar o sentido de nossa existência fora de nós mesmos.

A mais flagrante incoerência desta concepção é que embora creiam que os conteúdos éticos estejam fora do Ser Humano, esses mesmos seres humanos já sabem quais são esses conteúdos! Da mesma forma como costuma acontecer com o pensamento religioso, trata-se de procurar fora algo que só pode ser encontrado dentro, ao mesmo tempo que se crê que não esteja dentro e que nem possa estar, e ao mesmo tempo que já se tem esse algo, que serve de parâmetro para julgar o que esteja fora!

Se você não entendeu, muito menos eu! A tortuosa linha de raciocínio destas pessoas continua a me escapar por completo, continua a escapar delas também, mas elas insistem em não ver isso.

É muito pouco provável que a natureza tenha algo a nos ensinar num sentido mais profundo. Tudo indica que sem dúvida nossos fundamentos emotivos e comportamentais tenham base natural compartilhada com a maioria dos animais superiores, mas deveria ser evidente que o advento da humanidade é um avanço imenso em relação a essa base natural. A ética só no faz sentido em nível Humano, e é em nossa humanidade que deveríamos buscá-la.

3 - Mais Adaptados X Mais Brutais

O cerne central da Teoria da Evolução Biológica Neodarwinista é que somente os indivíduos mais adaptados ao seu ambiente sobrevivem e podem deixar descendentes, num ciclo que se repete continuamente, e assim, graças a variabilidade genética que gera níveis de adaptação diferente, a evolução ocorre lentamente.

É difícil entender porque tantas pessoas ao verem a expressão "mais adaptados", leiam-na como mais violentos, agressivos, brutais e etc. Única coisa que poderia explicar frases citações como as do início deste texto.

Ser mais adaptado ao seu ambiente pode, ser dúvida, ter haver com ser fisicamente mais forte e ser capaz de dominar e eliminar o outro, mas em geral tem muito mais haver em ser capaz de sobreviver por diversas outras capacidades, porque se fosse tudo resumido à força bruta, então como seria possível explicar a mera existência, e grande maioria, das espécies fisicamente mais "fracas"?

Existem muito mais antílopes do que leões, muito mais insetos do que aranhas e muito mais peixes pequenos do que tubarões e golfinhos. E o mais interessante, muitos dos maiores animais da Terra não são predadores e nem são vítimas de predadores, como elefantes, girafas e rinocerontes. O maior animal da Terra, a Baleia Azul, embora seja carnívora não tem um décimo da agressividade de um tubarão branco, e os mais bem sucedidos animais, os insetos, embora possam ser impiedosamente esmagados por qualquer um de nós, são capazes de sobreviver em condições com as quais nem sonharíamos.

Muitos animais também, embora sejam individualmente frágeis em relação a seus predadores, sobrevivem exatamente porque cooperam uns com os outros, se reúnem em grandes grupos onde protegem seus membros mais fracos. Há inclusive diversos casos de colaboração entre espécies diferentes, como o caso dos pequenos pássaros que limpam o pelo de grandes mamíferos e ao mesmo tempo ficam protegidos de outros predadores.

Por fim, embora haja diversos casos de violência na natureza, alguns deles incrivelmente mais chocantes do que a maioria das pessoas suspeita, há muitíssimos outros casos de parcerias colaborativas, de alianças estratégicas, de harmonia, carinho e proteção. E o MAIS IMPORTANTE, todas tem fortíssimo valor adaptativo e impulsionam a evolução.

Não é a toa que existe tamanha proteção dos genitores à sua prole em diversas espécies, porque isso é benéfico para a maioria das espécies. Mas não devemos achar que somente isso é de ordem natural, pois a violência ou negligência com a própria prole também está presente no mundo animal.

Por fim, a maioria das virtudes e a totalidade dos vícios humanos tem seu correspondente no mundo natural. E não há uma relação específica de uns e outros com vantagens e desvantagens evolutivas. Uma espécie pode beneficiar-se mediante posturas que consideramos afetuosas ou mediante posturas agressivas e vice-versa.

Esse tipo de ignorância sobre o Evolucionismo é no mínimo metade do motivo que levou ao surgimento do Criacionismo, e para demonstrar isso, vejamos uma frase do principal articulador do famoso "Julgamento do Macaco", onde, no início do Século XX, a proibição do ensino de Evolução levou um professor evolucionista a ser processado num tribunal.

“Eu me oponho à teoria darwiniana porque eu temo que possamos perder a consciência da presença de Deus em nossa vida diária se aceitarmos a teoria de que através de todas as eras nenhuma força espiritual tocou a vida do homem ou moldou o destino das nações. Mas existe outra objeção. A teoria darwiniana apresenta o homem chegando à sua atual perfeição pela ação da lei do ódio – a lei implacável pela qual os fortes matam os fracos. William Jennings Bryan (1860-1925)

UMA SITUAÇÃO COMPLICADA

Se perguntarem a mim, ou a qualquer outro evolucionista que estudou o assunto, se foi certo tentar proibir o conteúdo do livro que o professor evolucionista John Scopes lecionou nesta ocasião, surpreendentemente, a resposta será SIM!

O tal livro de evolução em questão realmente merecia ser proibido! O problema que não pelo motivo alegado por Jennings, mas sim por um outro, muito mais grave, que passou totalmente desapercebido por ele e por qualquer um dos anti-evolucionistas da época.

Segundo Stephen Jay Gould, o livro em questão trazia, misturado com a parte biológica, uma série de preconceitos sociológicos, como etnocentrismo que pregava a superioridade da "raça ariana" e defesa de esterilizações forçadas em massa de populações de imigrantes. Também dava uma notável ênfase à questão da força bruta no que se refere à adaptação, pelo motivo mais provável de que naquela época a idéia de ser "mais forte" exigia dos que se achavam nessa confortável posição uma justificação racional, e o darwinismo caiu como uma luva para os potentados que queriam legitimar sua posição de dominação social. (Este episódio está magistralmente narrado no livro Os Pilares do Tempo.)

Não só esse, mas houveram de fato muitos abusos filosóficos, sociológicos e políticos utilizando-se de conceitos darwinistas, o famoso Darwinismo Social, articulado por um primo distante de Darwin, é o exemplo clássico. De uma certa forma, a reação dos setores conservadores poderia ter sido justíssima se não fosse por dois detalhes.

Em primeiro lugar, a maioria dos religiosos estava mais preocupado com a literalidade de sua interpretação da Gênese do que com qualquer condição social ou ética em si. O criacionismo tem uma época certa de nascimento, que é a declaração dos 5 Fundamentos da Fé Cristã que dão origem, na virada dos séculos XIX e XX, ao Fundamentalismo no sul dos E.U.A. O primeiro dos fundamentos estabelece essa literalidade da Bíblia, e é somente a partir daí que começaram a surgir a iniciativas anti-evolucionistas organizadas. Ou seja, o Criacionismo NASCE DE UMA DECLARAÇÃO FUNDAMENTALISTA que nada tem haver, nem remotamente, com ciência.

Em segundo lugar está o fato de que estes mesmos fundamentalistas cristãos não se opunham a muitos dos conceitos abusivos desenvolvidos em nome do darwinismo, principalmente nas alegações etnocêntricas, visto que é exatamente nesta mesma região do sul dos E.U.A. que estão as mais fortes tendências ao racismo ariano extremado. Os W.A.S.P (White Anglo-Saxan Protestant), estão intimamente ligados ao fundamentalismo e ao Criacionismo, bem como à Klux-Klux-Klan! E assim, como poderiam se incomodar com uma "teoria" que afirmava que negros, índios e judeus eram uma raça inferior?

É aqui que tem-se uma das maiores oportunidades perdidas da história, se nesta época os Criacionistas tivessem se concentrado e acertado o alvo de suas críticas, poderiam ter colaborado para evitar ou atenuar futuras tragédias como o Holocausto ou outras atrocidades cometidas em favor do etnocentrismo utilizando-se de conceitos darwinistas distorcidos.

Infelizmente, nada disso foi feito. Os criacionistas decidiram bater de frente justamente com o que havia de bom em todo o legado darwinista, que é o cerne teórico central que permanece até hoje. Ao invés de atacarem Herbert Spencer, o pai do Darwinismo Social, eles preferiram atacar o próprio Darwin. Guardadas as proporções, é como atacar Jesus Cristo pela caça às bruxas de Salem!

É PRECISO EVOLUIR!

Willian Jennings Bryan até chegou perto de criticar o ponto certo, mas, como sempre, pelos motivos errados. Se tivesse lido "A Evolução das Espécies" com atenção, veria que quem deveria ser proibido não era Darwin, mas sim um bando de outros autores que distorceram sua idéia central.

O mais interessante ainda é que tudo isso ocorreu antes da Grande Síntese, que se deu por volta de 1940 resultando na Teoria Sintética da Evolução, ou Neodarwinismo. Atualmente qualquer implicação ética em evolução está superada, e os autores que defendem tolices baseados em Darwin estão, felizmente, extintos. Não se encontra mais livros escolares de biologia misturando racismo ou capitalismo com evolução biológica, e nem qualquer idéia neste sentido tem qualquer apoio da comunidade científica.

Entretanto, o discurso dos criacionistas não evoluiu. Continua se baseando nas mesmas impressões de seus ancestrais de um século atrás. Temos visto criacionistas movendo guerras santas contra idéias que já estão abandonadas há no mínimo 60 anos e que mesmo antigamente não eram de fato embasadas pela evolução biológica.

O Evolucionismo nada tem a nos dizer sobre ética, a não ser apontar casos de comportamento animal que servem para nos lembrar que nosso comportamento tem uma base natural, seguindo o imperativo reprodutivo dos genes que pode usar tanto o altruísmo como o egoísmo para aumentar suas chances de replicação. Mas como o próprio Richard Dawkins disse ao final de seu livro O Gene Egoísta nós, humanos, somos os únicos que podemos nos rebelar contra a tirania dos genes.

A Ética é um empreendimento humano, nossas recentes conquistas teóricas sobre os Direitos Humanos Universais, que ainda estão começando a ser levadas à realidade, são resultado de nosso próprio esforço intelectual e nossas qualidades sentimentais. A natureza tem muito pouco haver com isso, e as religiões muito menos. Digo isso porque RELIGIÃO NENHUMA chegou perto do consenso luminoso que se expressa na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1945, que é herdeiro direto do Iluminismo pós-renascentista.

Atacar o Evolucionismo hoje em dia por motivos éticos é querer viver de um passado errôneo, que em nada tem a contribuir. Curiosamente, há claríssimos indícios de que seja exatamente isso que deu origem ao Design Inteligente.

Do texto de alguns autores, como Júlio César Pieczarka O que é o Design Inteligente?, podemos inferir que o DI é quarto estágio evolutivo da campanha iniciada por precursores como Willian Jennings Bryan. O primeiro foi a simples proibição do ensino evolucionista, o segundo, quando a proibição já não era mais possível, foi a criação do Criacionismo "Científico" e sua reivindicação de tempo igual com o Evolucionismo em aulas de biologia.

O terceiro estágio, quando esta última iniciativa também falhou, foi uma sofisticação do primeiro. Tentar provar que o Evolucionismo não era ciência, mas sim um tipo de religião disfarçada, como ficou provado que o Criacionismo era, e dessa forma, invocando a mesma premissa legal que derrubou a "Ciência" da Criação, tentar derrubar o ensino de Evolução Biológica. Mas esse movimento também não teve muito resultado.

Assim, o quarto estágio seria também uma sofisticação do segundo. Criar uma nova "alternativa" ao pensamento evolucionista, que seria o DI. Muito mais afastado de qualquer mácula religiosa e muitíssimo mais articulado cientificamente.

Outrora eu fui muito cético desta possibilidade, considerando-a, ao menos em parte, como um tipo de paranóia dos evolucionistas mais exaltados. No entanto, após tomar conhecimento do texto THE WEDGE STRATEGY, tive que reconsiderar minha opinião. Como colocado por Pieczarka, esse texto é o lançamento de um programa que viria a resultar no Design Inteligente, é que é de cunho fundamentalmente moral e teísta.

E... Juro que fiquei pasmo! Sua primeira frase é nada menos que:

"A proposição de que os seres humanos são criados à imagem de Deus é uma das pedras fundamentais na quais foi construída a civilização Ocidental. Sua influência é percebida na maioria, se não toda, as grandes conquistas ocidentais, incluindo democracia representativa, direitos humanos, livre iniciativa e progresso nas artes e ciências."

Compare esta frase com a de Bryan mais acima!

Daí, segue afirmando que tal concepção está sob ataque do Materialismo, reforçado por Darwin, Marx e Freud, que é um movimento que leva à irresponsabilidade social, distorções na justiça criminal e falsas promessas de progresso! Vou deixar para uma segunda oportunidade os motivos de porque afirmo que a segunda frase beira à estupidez, e me concentrar no fato de que os motivos são basicamente os mesmos de 100 anos atrás!

Ao tomar conhecimento deste documento fiquei muito espantado, ele foi associado ao DISCOVERY INSTITUTE, do qual Michael Behe e Willian Dembsky, talvez os maiores DIstas da atualidade, fazem parte. Diante do peso desta evidência, ainda me vi vacilante ao supor que o tal instituto não reconheceria tal documento, e que o mesmo seria sempre visto como uma tentativa evolucionista de desacreditá-lo, e ao DI.

Mas minha oscilação durou pouco, procurando um pouco mais, descobri, para meu total espanto, o seguinte texto The "Wedge Document": So What?, meio que escondido no próprio site do Discovery! Para quem não entende inglês, So What é algo como "E Daí?", e este texto não só assume o documento como ainda o defende, tentando porém minimizar seu impacto. É curioso notar que o mesmo texto não é facilmente encontrável no site do instituto, tem que ser garimpado via sites de busca diretamente na URL!

Tecnicamente continuo dizendo que DI não é criacionismo pelo simples fato de que literalmente não o é, sendo então Evolucionismo Teísta. Se qualquer concepção que adote algum nível de intencionalidade na natureza necessariamente for criacionismo, teríamos que negar o título de evolucionista a Lamarck e a ao menos metade dos cientistas que ajudaram Darwin a revolucionar a biologia. Além disso, a própria teoria do Big-Bang poderia ser considerada criacionista dada a súbita aparição da energia que gerou o Universo.

Mesmo assim agora parece evidente que a intenção do DI não é muito mais científica que a do Criacionismo "Científico", e que não é a toa que muitos criacionistas, que finalmente parecem estar aceitando a derrota definitiva do Criacionismo, tenham migrado para as fileiras do DI.

Uma coisa é de fato animadora, houve um progresso. Discutir DI é muito mais produtivo e saudável do que discutir Criacionismo "Científico" ao estilo Henry Morris e Duane T. Gish, que afinal, já estão ultrapassados. Mas decidi levantar esse tópico porque este texto trata de ÉTICA, e assim pergunto: É ética a atitude dos Criacionistas?

DESMASCARAMENTO E OFUSCAMENTO

Que a desonestidade é antiética é um consenso universal, sendo assim, como julgar a atitude dos articuladores do Criacionismo "Científico" e Design Inteligente?

Usando o modelo evolutivo do anti-evolucionismo fundamentalista, o mais honesto foi sem dúvida o primeiro estágio. Simplesmente proibiram o ensino da Evolução. Nada mais direto e franco. Mas uma vez que tal medida se mostrou descabida numa sociedade secular, o quão honesto foi o segundo estágio?

Os fundamentalistas inventaram uma "Ciência" completamente fajuta e tentaram empurrá-la como cientificamente válida! Seus métodos chegaram às raias da falsificação (no sentido de falsários). Chegaram a ponto de tomar publicações claramente religiosas e omitir todas as frases que faziam referência à Deus, Jesus, Bíblia e etc, o que deixou um resultado no mínimo grotesco, e com essa impostura tentaram se fazer passar por cientistas mesmo quando TODOS eles eram devotos protestantes!

Foram derrubados num tribunal que com o apoio de diversos cientistas desmascarou a farsa. Essa tentativa foi honesta?

Depois disso, decidiram inverter completamente o argumento. Ao invés de afirmar que o Criacionismo era tão ciência quanto o Evolucionismo, decidiram alegar que o Evolucionismo não era ciência. Não há uma impostura aqui?

A agora, o que dizer desta manobra do Discovery Institute? Isso não é uma flagrante desonestidade? Por que ocultar suas intenções religiosas e simular um discurso cientificista que sempre se revelou inócuo? Quando, por outro lado, é exatamente no discurso religioso franco e direto que o protestantismo sempre cresceu, e como qual conseguiu converter de fato pessoas ao criacionismo. Ninguém jamais foi convertido ao cristianismo pelo criacionismo, e sim o inverso.

Lembro que o Discovery Institute se apresenta como uma instituição laica, secular, filosófica e científica e sem qualquer vínculo religioso. No entanto, além do fato de textos conversadores de viés religioso abundarem no site, o The "Wedge Document": So What? está escondido. Não facilmente acessível navegando diretamente pelas páginas, e basta uma breve olhada pelo texto para ver o quanto ele foi constrangedor para o instituto que se diz laico.

Isso foi pura e simples desonestidade. E das piores! O Criacionismo "Científico", por mais ardiloso que fosse, ainda era ingênuo e nunca tentou esconder sua conexão com a religião, mas esse movimento que resultou no DI foi suficientemente perverso para enganar até a mim!

Temos então um resultado estranhíssimo. Uma preocupação original de ordem ética, desencadeia um procedimento anti-ético que visa restabelecer uma inexistente superioridade ética do passado. A simples menção ao nome de Marx ajuda a explicitar a natureza política direitista conservadora, e Republicana, deste movimento, e uma total falta de bom-senso histórico ainda insinua que todas as nossas conquistas democráticas e ética atuais se deram devido a concepções teístas que governaram o mundo por milhares de anos sempre associadas a escravidão, servidão, guerras santas, inquisições, caça às bruxas e toda uma sorte de coisas que, embora também tenham sido cometidas por não teístas, ao menos não tinham a contradição intrínseca de serem portadores de uma virtude divina superior.

Mas ainda assim, isso talvez seja um tanto injusto de minha parte. Fundamentalmente, não duvido da sinceridade e boa intenção de muitos desses maquinadores. Afinal, mentir pode ser necessário se for por uma boa causa. Ninguém ético diria a verdade a um psicopata assassino sobre para onde fugiu sua vítima, assim, essa farsa fundamentalista seria por uma boa causa, afinal, tratar-se-ia de uma Guerra Santa, onde vale tudo. Até faltar com a verdade.

Eu gostaria de finalizar este texto com a frase "e conhecereis a verdade, a verdade vos libertará" João [8:32], mas esta não é muito adequada, por isso recorrerei a um autor bem menos conhecido, e sacarei uma frase que em seu contexto original pouco tem haver com este assunto, mas que isoladamente, reflete bem o estranho medo que esses piedosos religiosos tem do desenvolvimento científico, do futuro em geral, e do próprio conhecimento.

"Uma das maiores misericórdias do mundo, penso eu, é a incapacidade da mente humana correlacionar todo o seu conteúdo. Vivemos numa plácida ilha de ignorância em meio a negros mares de infinitude, e não fomos designados a ir longe. As ciências, cada qual avançando em sua própria direção, até agora nos causaram pouco dano, mas há de chegar um dia onde a junção das peças soltas de nosso conhecimento abrirá visões tão terríveis da realidade, e de nossa assustadora posição nela, que só nos restará enlouquecer perante a revelação ou fugir da luz fatal para a paz e a segurança de uma nova Idade das Trevas."
H.P.Lovecraft (1890-1937)

Marcus Valerio XR
Abril-Maio de 2006

Os Criacionismos
É possível haver
Ciência Sobrenatural?


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